Dia desses eu fui a Maputo

Dia desses eu sonhei que estava voando para Nova York. Não que seja meu sonho ir a Nova York, antes preferiria conhecer Maputo. Mas eu cresci assistindo filmes que me possibilitaram conhecer Manhattan de ponta cabeça. Acho que algo permaneceu no subconsciente. O mesmo não aconteceu com Maputo.
Bem, apresento-me. Sou uma mulher negra que atende a alguns estereótipos solicitados pela narrativa midiática: periférica, filha de empregada doméstica, etc. Também sou atualmente uma artista, bem empregada, independente, moradora de um bairro nobre do Rio de Janeiro, namorando um homem negro… nem nos meus melhores sonhos, nem naqueles em que eu vou a Nova York, eu pensei em ocupar tal status.
Antes de travar uma luta política e social para derrubar todos os muros que me impediam de ocupar tal posição, foi preciso… sonhar. Sonhar o inimaginável, o impossível. Isso mesmo, antes de desafiar o realismo excludente e o naturalismo conformador, foi preciso exercitar o sonho surrealista. Foi preciso ir além de Nova York e visitar Maputo.
Para que Amelia Earhart cruzasse os ares pela primeira vez, ou para que qualquer outra mulher desse o seu primeiro voto, foi necessária uma viagem a Nova York. Mas para que Carolina Maria de Jesus publicasse e tivesse seu primeiro livro com o devido prestígio literário, foram precisas algumas noites em Maputo.
Eu não conheço Maputo, nunca tinha ouvido falar até pouco tempo. Assim como durante muito tempo não conheci ou tive notícias de nenhuma mulher negra, bem sucedida e muito menos bem amada. Eu sou o sonho mais bonito e mais impossível dos meus ancestrais.
É aqui, querido leitor, nas nossas subjetividades que a grande batalha se instaura. Ainda hoje, para que qualquer mulher assim como eu decida ousar, lutar, inventar, descobrir, presidir, é preciso antes sonhar com o inimaginável, o impossível.
A arte enquanto amplia horizontes para uns, pode ser instrumento de manutenção de opressões para outros. Por muito tempo na literatura, no audiovisual e nas artes com maior evidência não pudemos ser sujeitos das nossas próprias histórias. Esse modelo moldou o imaginário de toda uma geração, castrando os sonhos da juventude negra e embaçando a visão de toda uma sociedade que não reconhece pessoas negras em outros lugares que não o da marginalização. Para essa sociedade, para essa arte castradora, eu não existo. Ou só existo em datas como essa quando a sociedade sai da caverna para dialogar com pessoas negras sobre o único assunto a que nos diz respeito: a nossa sobrevivência.
Caro leitor, é preciso sonhar. Sobreviver já não é mais suficiente.
Esse diálogo aqui hoje não busca jogar luz a uma obra específica, mas deixar um convite ao sonho. Alimentem-se de obras que interajam com os sonhos mais (im)possíveis da juventude negra. É preciso um esforço do consumo por obras que resgatem o passado heroico afro-brasileiro, mas um consumo que vá além de Zumbi e muito além de novembro. Um consumo que demande e naturalize uma diversidade de heróis e protagonistas negros e negras no imaginário de todas as crianças.
Esse esforço precisa ser coletivo. Uma criança precisa sonhar em pisar na lua, mas também é preciso que toda uma sociedade vislumbre junto a ela a concretização desse sonho.
Hoje em dia já é possível sonhar com Wakanda, com a subjetividade das personagens de Conceição Evaristo, com os superpoderes de João Arolê, com o pulso firme da doutora Miranda Bailey, com os mundos possíveis do mulherismo afrikana defendidos pela professora Aza Njeri, com a inventividade performativa de Beyoncé...
Que possamos em novembro relembrar a história de luta do povo negro celebrando a nossa consciência, mas que em todos os outros dias celebremos a possibilidade de ir a Maputo.